sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Pitíco, o palhaço sem graça

Menção Honrosa no VII Prêmio Barueri (SP) de Literatura - Conto e Poesia - 2010

-Senhoooooooooras e senhores! Atençãããããããão criançada... Vem aí a alegria do Circo Lobato... Com vocês o palhaço Pitícooooooooooo...
A bandinha desatou a tocar aquela marchinha que caracteriza a entrada do palhaço, enquanto Pitíco entrava tropeçando e dando cambalhotas, enroscando-se nos enormes sapatos vermelhos.
-Criançada, booooooa tardeeee!... Não mais do que meia dúzia de crianças responderam desanimadas.
-Mas assim está muito fraco! Parece até que vocês não paparam hoje! Quem comeu tudo o que a mamãe serviu? Ninguém se manifestou.
-Ah... Muito bem! É assim mesmo que tem que ser! Então agora eu quero ouvir bem forte: Criançada, booooooa tardeeeeee...
Foi possível distinguir três respostas, sendo uma de um adulto visivelmente penalizado com o fracasso do palhaço. Aliás, a cada espetáculo não era diferente. Pitíco, por mais que se esforçasse, não tinha o carisma necessário para adquirir a simpatia da criançada. Mas era preciso insistir porque não sabia fazer mais nada na vida, forçado que foi pelo velho pai, este sim um palhaço de grande sucesso enquanto atuou, querendo ver no filho o prosseguimento de sua arte.
-Valdir, a coisa tá ficando séria. Meu circo está à beira da falência e você sabe que circo sem um bom palhaço não tem chances de sobreviver.
-Mas seu Lobato! Eu não sei fazer outra coisa...
-Você não sabe fazer nada, Valdir. Nem mesmo ser palhaço.
-Seu Lobato, por favor, entenda minha situação. Se eu for despedido não tenho prá onde ir e nem o que fazer. E prá complicar essa gravidez da minha mulher...
-Trate de dar um jeito. Circo sem palhaço não sobrevive. E com palhaço sem graça fica ainda pior.
O espetáculo noturno não foi diferente. As poucas dezenas de pessoas que se aventuraram a comprar os ingressos saíram visivelmente desapontadas sem as gargalhadas de seus filhos. O olhar frio e ameaçador do dono do circo retardava o sono de Valdir, ainda mais perturbado pelas manifestações de mal-estar da mulher grávida.
-Molecada desgraçada... Querem que eu faça o quê? Será que custa tanto dar umas risadas? Na televisão por qualquer besteira todo mundo morre de rir... É bem feito prá mim. Se não gosto de crianças, porque fui dar ouvidos ao velho? E eu que ainda sonhava em ser aclamado, ganhar dinheiro, ser convidado prá TV... Pro inferno essa molecada!
Domingo, nova matinê. A distribuição de ingressos gratuitos trouxe público em dobro, chegando a ocupar metade das instalações do circo.
-Olha lá, heim Valdir! Hoje a casa tá cheia e vê se num faz papelão.
-Vou tentar, seu Lobato, vou tentar...
-murmurou emburrado, já prevendo uma nova tentativa frustrada de fazer com que as "pestinhas" vissem alguma graça em sua atuação.
-Que saco! –pensava. -Porque essas crianças não ficam brincando na rua? Vida desgramada... Não toléro criança e tenho que ficar fazendo gracinhas prá elas...
-Tá na hora, Vardí!
Ajeitou a peruca vermelha, colocou o nariz, conferiu o enorme macacão de bolinhas coloridas, calçou os sapatões e lá se foi murmurando palavrões. O resultado final não foi diferente.
-É... Acho que não dá mais, Valdir.
-Seu Lobato!...
-Só mais hoje à noite e depois chega. Já chamei outro.
O proprietário do circo retirou-se deixando Valdir imerso em seu fracasso. Não sabia o que pensar. O arrependimento por ter seguido uma carreira que não gostava, o ódio ao se lembrar dos rostos das crianças esperando uma graça engraçada, o filho que estava chegando, o futuro sem certezas, tudo se misturando a um certo alívio por não ter mais que enfrentar aqueles olhos infantis que ele tanto temia.
-Vai ser o último espetáculo do Pitico. -murmurou para a mulher.
-Deus é pai, Valdir. Ele vai mostrar um caminho prá nós.

-...E com vocês o palhaço Pitícoooooo...
O anúncio lhe parecia muito distante, tão distante que não conseguiu interromper seus pensamentos. Continuou por mais alguns instantes recostado sobre a plataforma do elefante, abismado com a nova situação que o esperava. Mentalmente estava muito longe, mas ainda conseguia ouvir o reduzido número de aplausos que não se repetiriam no final e nem nunca mais.
-... E além de tudo ele deve ser surdo! Mas vamos tentar novamente: com vocês o palhaço Pitícoooo...
-Acorda Vardí, é o cê!
Não entrou tropeçando ou dando piruetas. Andou lento, cabisbaixo, triste, até sentir que atingira o centro do picadeiro. Não pensou em nenhuma graça para aquela noite, a última, porque não tinha graça. A piada maior, pensava, era sua vida. Parou. Titubeando levantou o rosto e encarou o olhar inimigo das crianças. Sentiu-se fraco, fracassado. Sentiu-se ninguém. A grande e colorida bengala escapou-lhe das mãos, as pernas tremeram. Não conseguiu conter a primeira lágrima que abriu caminho para muitas outras. O silêncio fez com que seu soluço ecoasse por toda a arquibancada. Sentou-se no centro do picadeiro e, com a cabeça em meio aos joelhos, chorou o choro do desespero, da derrota, da criança desamparada. E prá quê disfarçar? Em meio ao silêncio um risinho ingênuo seguido de uma pergunta:
-Paiê, porque o palhaço tá chorando?! -e todos caíram na gargalhada.
Pitico encheu-se de uma força que nunca teve. Levantou-se. Era seu último espetáculo e não tinha porque deixar de dividir seu fracasso com o mundo.
-Estou chorando porque não gosto de crianças.
Novas gargalhadas.
-Estou chorando porque não sei fazer rir.
Muitas gargalhadas.
-Estou chorando porque não consigo ser um palhaço no circo, mas sou um palhaço na vida.
E tome gargalhadas.
-Estou chorando porque não tenho prá dar o que vocês vieram buscar.
Mais gargalhadas.
-Estou chorando porque fui despedido do circo, porque sou um palhaço sem graça.
Outras gargalhadas.
-Vardí, Vardí!!!!... -o funcionário invadiu o picadeiro desesperado. - Seu filho tá nascendo! Corre lá, home!
Pitíco esqueceu-se de tudo. Quis sair correndo para acudir a mulher, mas enroscou-se nos enormes sapatos e caiu. Tentou novamente e rolou pelo chão. O desespero lhe dominou e quanto mais tentava se apressar mais se enroscava na fantasia, proporcionando as mais engraçadas cenas que a humilde platéia daquela cidade havia visto. O público delirava em gargalhadas e aplausos que o palhaço não conseguia ouvir.
-É um molecão! -anunciava a trapezista que ajudara no parto, estendendo ao pai a criança.
-É uma criança!
-Cê queria que fosse o quê, Vardí? Um trator?
A mãe esqueceu a dor para rir também. O espetáculo continuava, mas todos que não estavam em cena concentravam-se ao redor para dividir a alegria. Até o patrão se aproximava.
-E eu que nem gostava de criança! -comentou Valdir, sem saber se ria ou se chorava.
-Vai ser palhaço também? -questionou alguém.
Seu Lobato entecipou-se:
-Se for dos bons como o pai, já está contratado!


(Deni Píàia)

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