sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Saudades do Vermelhão

Poucas vezes vi um sorriso tão sincero e me espanta ainda lembrar disso tudo, visto que se passou nos meus três ou quatro anos de idade. Tenho na memória que ele era um negro magérrimo, alto e com aquele sorriso que toda criança entende e gosta. Sua boca era enorme, adornada por grandes e alvos dentes, com beiços exagerados e vermelhos, quase roxos como uma beterraba. Não por acaso todos o chamavam de “Vermelhão” e seu nome verdadeiro duvido que alguém soubesse.
Todas as tardes era uma alegria quando ele passava de volta do posto de gasolina onde era frentista. Na rua esburacada, sem pavimento ou calçada, deixava à mostra um rastro de sorrisos e poças da simpatia que espalhava pelo caminho. Nenhuma criança ficava sem uma palavra alegre, um conselho, uma atenção. E todas elas se sentiam importantes, porque recebiam atenção em doses iguais. Aos pais sempre ficava um cumprimento respeitoso. E todos gostavam muito do Vermelhão, mesmo quando exagerava nas biritas no bar do italiano Líbero.
A época era de rodar pneu. Todos tinham um pneu velho para rodar pela rua José Soriano de Souza Filho, desde os muros do Cemitério da Saudade até lá embaixo, pertinho do Balão da Morte. Ora espirrando água das poças, ora levantando poeira. Era uma festa aquela molecada toda desembestada correndo cada qual atrás de seu pneu. Mas eu não tinha. Apenas corria com eles, mas não tinha o meu pneu. Tudo bem! Até então ninguém havia me ensinado sobre inveja, frustração e essas coisas. Por isso não via nada de anormal em não possuir o meu pneu para correr atrás. E então alguém lembrou: “pede pro Vermelhão que ele te arruma um”. Não foi difícil, mas acho que meu pai me ajudou; Afinal, adultos sempre se levam mais a sério. E então começou a espera. Todos os dias quando Vermelhão surgia sem o pneu, encontrava minha decepção no velho portão de madeira, rosto colado nas ripas, olhos voltados ao chão. Ele pedia uma porção de desculpas sinceras pelo esquecimento, prometia para o dia seguinte e era o suficiente para me encher de alegria e esperanças.
Um dia, enquanto almoçávamos, todos os quatro da família reunidos, eis que um barulho de pneu se chocando com o chão próximo à porta nos assusta. Sou o primeiro a correr e ver o Vemelhão se afastando e acenando com aquele sorriso de dever cumprido. No chão jazia meu novo companheiro, velho pneu que por muito tempo correu comigo pelas ruas do Jardim dos Oliveiras. Saudades do Vermelhão...